quinta-feira, 11 de setembro de 2008

Conflitos de Leis no Espaço


Bens. Sucessão. Família e direitos pessoais.

Fonte: netsaber

Conflitos de leis no espaço.

O conflito de leis no espaço decorre de dois fatores: a diversidade legislativa (cada sistema jurídico, autônomo e soberano, dá tratamento diferente a aspectos sociais) e a existência de uma sociedade transnacional (relações entre indivíduos vinculados a sistemas jurídicos diferentes).

Se existisse um direito absolutamente uniforme ou sociedades herméticas, não existiria o “fato anormal” (fato jurídico vinculado, por qualquer de seus elementos, a mais de um ordenamento), que gera o conflito de leis.


A regra geral é a aplicação do direito pátrio, aplica-se o direito estrangeiro por exceção, quando expressamente determinado pela legislação interna. Nesses casos, o juiz deve aplicá-lo de ofício e do modo mais completo possível.

Só não deve aplicar o direito estrangeiro, determinado pela norma de direito internacional privado (“norma colisional”), quando verificar que fere a ordem pública, a soberania ou os bons costumes ou quando os interessados estiverem tentando fraudar a legislação interna (como no caso de divórcios realizados no exterior, para burlar a lei nacional, que não os permitia na época).

Normalmente os sistemas normativos utilizam como critério para determinar a aplicação do direito estrangeiro a nacionalidade dos interessados ou o seu domicílio. No caso brasileiro, utiliza-se predominantemente o domicílio, pelo seu caráter voluntário (a nacionalidade originária é, de regra, circunstancial) e por provocar maior integração do estrangeiro com o sistema nacional. Tendo o Brasil recebido um grande fluxo de imigrantes, permitir a aplicação da lei de nacionalidade impediria essa integração dos estrangeiros com o sistema brasileiro.

O domicílio, para efeitos de direito internacional privado, é analisado sobre o prisma do direito interno, ou seja, seus requisitos são os do direito interno (residência com animus definitivo). Caso a pessoa não tenha domicílio ou este seja desconhecido, a LICC manda aplicar a lei do país onde tenha residência ou, por fim, do local onde a pessoa se encontre.

Ao lado da LICC, há o Código de Bustamante, que traz diversas normas de direito internacional privado. Em sendo um conjunto de normas especiais (aplicáveis apenas aos nacionais dos países signatários), não foi revogado pela LICC. As normas do Código de Bustamante, inclusive, em sua maioria, são compatíveis com as da LICC.

Personalidade

A primeira questão a ser enfrentada em direito internacional privado diz respeito à personalidade. Vários sistemas existem para fixar o momento de seu início, bem como de seu fim (sobretudo em termos de presunções).

Segue-se a regra geral: aplicar o ordenamento do país do domicílio, inclusive para determinar a capacidade.

Com relação ao início da personalidade, aplica-se a lei do domicílio dos pais no momento do nascimento, não importando o país onde a criança nasça (ex: se os pais moram na França, mas a criança nasce na Inglaterra, o início da personalidade é determinado pela lei francesa).

No caso de os pais terem domicílios internacionais diferentes, a LICC determina que se aplique a lei do domicílio do pai (para todos os efeitos, salvo em casos de abandono), porém, em face da isonomia determinada pela Constituição Federal, essa norma é discutível.

Observe-se que, em se tratando de verificação do início da personalidade para fins de sucessão, aplica-se a lei de regência desta (último domicílio do “de cujus” ou do desaparecido).

Outra ressalva a ser feita diz respeito à ordem pública: o direito brasileiro não admite penas como a de morte civil, de modo que a extinção da personalidade derivada deste tipo de sanção não será levada em consideração no Brasil.

Com relação às pessoas jurídicas, o início e o fim de sua personalidade são regidos pela lei do local de constituição.

O direito brasileiro, portanto, reconhece a existência de qualquer pessoa jurídica constituída regularmente segundo as leis do seu país de origem. Contudo, uma coisa é reconhecer sua personalidade, outra coisa (bem diversa) é permitir o exercício de suas atividades no Brasil. Para este fim, exige-se que o governo brasileiro tenha aprovado os seus atos constitutivos, ficando sujeitas à legislação brasileira.

Casamento

Embora a doutrina sempre defenda que cada ato deve ficar sujeito a apenas uma legislação, em diversas hipóteses mais de um ordenamento irá reger determinado ato. No caso do casamento, por exemplo, há a possibilidade de sujeição a diversos ordenamentos jurídicos, cada qual regendo alguns aspectos do instituto.

A capacidade para casar segue a regra geral: o domicílio de cada um dos nubentes (podem ser domicílios distintos, sujeitando a ordenamentos distintos. Ex: se a noiva for domiciliada no Brasil e o noivo na Argentina, a capacidade dela estará sujeita às leis brasileiras e a dele às argentinas).

Justamente pela possibilidade de os nubentes terem domicílios diferentes, o procedimento para o casamento (os requisitos formais ou extrínsecos) não podem estar sujeitos concomitantemente a dois regimes diferentes. Deste modo, aplica-se a lei do local da celebração (“jus loci celebrationis”), independentemente do domicílio dos nubentes.

A autoridade celebrante também deve ter capacidade, a qual é aferida pela lei de seu domicílio. Como essa capacidade também é um requisito formal para a celebração, concomitantemente deve ser reconhecida pela lei do local da celebração.

Essa lei também é aplicável aos dirimentes absolutos ou relativos, de modo que a validade ou invalidade do casamento em virtude desses fatores há de levar em consideração, primordialmente, a lei do local de celebração.

Deste modo, na opinião de Oscar Tenório, no caso de casamento realizado no Brasil não se devem analisar os impedimentos e dirimentes existentes na lei domiciliar de cada um dos nubentes, mas apenas os da lei brasileira (lei do local de celebração). Outros autores, por cautela, consideram necessária a análise da lei domiciliar, para evitar fraude à lei.

O art. 7º, §3º, da LICC, estabelece a necessidade de se aferir a validade do casamento em função da lei do primeiro domicílio conjugal, se os nubentes tiverem domicílios diferentes. O STF não aplica esse dispositivo com relação aos impedimentos e dirimentes, vez que, como mencionado, devem obedecer à lei que regulou a celebração do casamento.

Apenas as nulidades posteriores ao casamento (p. ex., “ausência da consumação do casamento”) devem ser observadas segundo a lei do domicílio conjugal. Esta lei também indicará se o casal tem direito ou não ao divórcio.

Há um princípio geral de preservação da família, de modo que o casamento se presume válido e eficaz, independentemente do seu local de celebração. Quem tiver interesse em sua anulação ou desconsideração tem o ônus de provar a nulidade.

No caso do divórcio, há de se observar o disposto na Constituição Federal (art. 226, §6º). Apenas se pode homologar a sentença estrangeira de divórcio se atendido o pressuposto de um ano de separação judicial ou dois anos de separação de fato. Caso contrário, apenas é possível a homologação após um ano (Maria Helena Diniz).

Quanto ao regime de bens, legal ou convencional, aplica-se o vigente no local onde os nubentes tenham domicílio, ou caso sejam domiciliados em países diferentes, o ordenamento vigente no primeiro domicílio conjugal.

Se ambos os nubentes forem da mesma nacionalidade, o direito brasileiro permite que se casem no Brasil perante as autoridades diplomáticas ou consulares, utilizando-se o procedimento e demais requisitos formais do seu país de origem. É uma exceção à regra pela qual as formalidades se regem pela lei do local de celebração.

Por fim, a LICC excepciona o princípio da imutabilidade do regime de bens, permitindo que o estrangeiro casado, ao se naturalizar brasileiro, opte (com expressa anuência do cônjuge), pelo regime da comunhão parcial de bens, respeitados os direitos de terceiros.

Filiação e outros aspectos de direito de família

Aplica-se à filiação a lei vigente no domicílio conjugal à época do nascimento. Em defesa da ordem pública, porém, o direito brasileiro não reconhecerá distinções entre a filiação legítima e a ilegítima, vez que a Constituição atribui valor fundamental a igualdade da filiação.

No caso de ações de reconhecimento de paternidade ou maternidade, Amílcar de Castro indica como lei aplicável a vigente, à época do nascimento, no domicílio do pai ou da mãe, respectivamente. O Código de Bustamante, porém, manda aplicar a lei do domicílio do filho, considerando que ainda não se sabe se, de fato, a pessoa indicada é o pai ou a mãe. É necessário também verificar se a lei do local onde vai ser ajuizado o processo admite o remédio jurídico (há sistemas que impõem limitações às ações de reconhecimento de paternidade).

No caso da adoção, há o chamado princípio protetivo, de modo que se aplica de um modo geral a lei do domicílio do adotando até o momento da formalização do ato e daí em diante pela lei do domicílio do adotante, vez que o domicílio do adotado passa a ser o do adotante.

A capacidade para adotar rege-se, porém, pela lei do domicílio do adotante (capacidade para adotar) e do adotando (capacidade para ser adotado). As formalidades da adoção, por sua vez, regem-se pela lei do local de celebração (“locus regit actum”).

O mesmo se aplica aos demais institutos que dizem respeito à proteção dos menores e dos incapazes, como a tutela ou a curatela.

Observe-se que, em prol da ordem pública, ainda que a lei aplicável permita, por exemplo, castigos severos aos menores ou incapazes, por parte de seus pais, tutores ou curadores, a lei brasileira não reconhecerá este direito.

Sob o mesmo argumento de preservação da ordem pública, em casos de abandono moral ou material, aplica-se a lei protetiva brasileira, salvo se a lei domiciliar for mais favorável ao abandonado.

Bens

A LICC é clara: para qualificar os bens (p. ex., saber se são móveis ou imóveis) e para discipliná-los, aplica-se a lei do local onde estão situados (“lex rei sitae”).

Há, porém, algumas exceções:

- no caso de bens móveis em deslocamento (remetidos para determinado local ou acompanhando o seu dono em viagens, p. ex.), aplica-se a lei do domicílio do proprietário;

- no tocante aos navios e aeronaves, a doutrina predominante afirma que se aplica a lei do local da matrícula;

- em se tratando de apólices da dívida pública aplica-se a lei do emitente;

- caso a discussão sobre determinado bem se fundamente em direito sucessório (“mortis causa”), aplica-se a lei que rege a sucessão (lei do último domicílio do “de cujus”);

- segundo Oscar Tenório, “na matéria da capacidade para adquirir, vender e doar bens, observamos a lei que rege a capacidade em geral (domicílio).”

Segundo Amílcar de Castro, os casos de direitos reais de garantia devem ser regulados pela lei do local de celebração do contrato, não pela lei da situação dos bens. O Código de Bustamante, porém, expressamente aplica a “lex rei sitae” para regular a constituição, os efeitos e a extinção de direitos reais sobre a coisa alheia, quer de fruição, quer de garantia.

Observe-se que, no caso do penhor, a LICC determina a aplicação da lei do domicílio da pessoa em cuja posse se encontre a coisa empenhada. Deste modo, em penhores realizados por nacionais de países signatários do Código de Bustamante, aplica-se a lei de situação da coisa empenhada; nos demais penhores, aplica-se a lei domiciliar do possuidor.

Obrigações

No caso de obrigações legais, devem-se observar as normas geralmente aplicáveis àquele ramo jurídico (ex: obrigações alimentares regem-se pela lei domiciliar da família) ou pelas leis do local do dano, caso sejam “ex delicto”.

No caso de obrigações voluntárias, sobretudo as de índole contratual, fica difícil aplicar a lei domiciliar, vez que os contratantes podem ter domicílios diferentes. Também não vale à pena utilizar a lei do local de execução, vez que se pode pactuar execuções em vários países diferentes (ex: exibição mundial de determinado filme).

A solução dada pela legislação brasileira é a aplicação do direito vigente no local de constituição da obrigação. Em caso de contratos celebrados à distância, a LICC acolhe a lei do local onde esteja o proponente (observe-se que a lei fala em local onde “residir o proponente”, mas a doutrina e a jurisprudência entendem que se trata do local onde ele esteja, para compatibilizar aquele dispositivo com o Código Civil).

Há algumas exceções:

- a lei de regência dos contratos de trabalho é a vigente no local da execução, salvo se as do local de contratação forem mais favoráveis ao trabalhador;

- nos contratos de transferência de tecnologia, a lei brasileira não admite a aplicação de outros sistemas, reservando para si a regência de todos os negócios, em virtude da ordem pública (Maria Helena Diniz);

- os negócios relativos às Bolsas e Mercados se subordinam ao local de execução (onde funciona a Bolsa ou Mercado).

Além desses casos, observe-se que nas hipóteses em que a lei brasileira exija forma essencial (p. ex., escritura pública), esta terá que ser observada para que a obrigação possa ser executada no Brasil, admitidas as peculiaridades da lei do local da celebração.

Discute-se se o direito brasileiro permite que as partes escolham a lei aplicável aos negócios jurídicos, em face do art. 9º, da LICC. O art. 13 da antiga lei de introdução, ao determinar a aplicação da lei do lugar de constituição aos negócios jurídicos, expressamente ressalvava as estipulações em contrário.

Maria Helena Diniz afirma que o direito brasileiro é taxativo quando remete a matéria para a lei do local de constituição, de modo a não acolher a autonomia da vontade.

Sucessões

A sucessão pode ser “inter vivos” ou “mortis causa”, interessando mais, na presente sede, a “mortis causa”, já que a “inter vivos” se rege pelas normas aplicáveis às obrigações em geral.

Pela teoria universalista, a sucessão, sendo analisada como uma unidade, deveria ser submetida a apenas uma lei. É uma teoria idealista, não sendo aceita sobretudo quando houver bens imóveis localizados em diversos sistemas. Com a teoria pluralista não se deixa de cogitar de uma única lei, mas se admite o fracionamento da sucessão, existindo uma lei para cada fração.

Via de regra, a lei aplicável é a do último domicílio do “de cujus”. Transcrevam-se as palavras de Oscar Tenório: “em face do art. 10 da Lei de Introdução ao Código Civil, a lei domiciliar do ‘de cujus’ é preponderante. Exceções têm de ser admitidas. Os direitos dos herdeiros, por exemplo, se regem pela lei do ‘de cujus’. A capacidade segue a lei pessoal do herdeiro.”

Deste modo, por exemplo, no caso de herdeiro domiciliado no Brasil, o direito à sucessão será analisado com vistas à lei do último domicílio do “de cujus”, mas a existência de indignidade ou de deserdação rege-se pelas leis brasileiras.

No caso das presunções de sobrevivência ou de morte simultânea (p. ex., presunção de comoriência), segundo o Código de Bustamante se aplicam as leis domiciliares de cada um dos falecidos, em relação à sua respectiva sucessão.

Quanto aos testamentos, via de regra a sua forma se rege pela lei do domicílio do testador à época da constituição do ato e seu conteúdo pelas regras vigentes no domicílio que o testador tinha quando faleceu (último domicílio conhecido).

No caso brasileiro, porém, a ordem pública impõe limitações tanto ao conteúdo, quanto à forma do testamento. Assim, por exemplo, na sucessão realizada no Brasil não se admitem testamentos hológrafos ou que disponham de todo o acervo, quando houver herdeiros necessários, ainda que a lei domiciliar do “de cujus” permita essas práticas.

Como afirma Oscar Tenório, “a lei domiciliar do testador regula a capacidade para testar. (...) As limitações à capacidade de testar são determinadas pela lei das sucessões. Estabelecendo a lei da sucessão a reserva e, portanto, a cota disponível, o testador fica adstrito a respeitar aquela e a usar desta como melhor lhe convier. (...) Impondo-se a lei do ‘de cujus’, isto é, a sua lei pessoal, não influi na cota-reserva o domicílio dos herdeiros.”

Em termos de ordem pública, por fim, observe-se que a Constituição brasileira expressamente determina que a sucessão em bens de estrangeiro, situados no Brasil, será regida pela lei brasileira, sempre que for mais favorável ao cônjuge sobrevivente ou aos filhos brasileiros, que a lei do domicílio do “de cujus”. Quebra, deste modo, o princípio da unidade da sucessão, determinando o fracionamento da lei aplicável em proteção aos brasileiros.

É o caso, por exemplo, do falecimento de um cidadão mexicano casado com uma brasileira e cujos pais ainda fossem vivos. Pela lei brasileira, a cônjuge sobrevivente não tem direito à herança, pois os ascendentes do falecido detêm a preferência; pela lei mexicana, porém, ela tem direito a cinquenta por cento da herança, repartindo-a com os ascendentes. Em face da Constituição Federal, seria aplicável a lei mexicana, em relação aos bens situados no Brasil, pois é mais favorável à cônjuge brasileira.

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